UM CAMINHO DE LUZ NA PANDEMIA

Por que fazer o Caminho? Talvez essa seja a pergunta mais repetida àqueles que resolvem fazer o Caminho de Santiago de Compostela. Por que alguém se dispõe a enfrentar uma dura e longa caminhada, o cansaço extremo sob os intempéries da natureza, a solidão diária e as noites compartilhadas em albergues simplórios, embrulhados em sacos de dormir? O que motiva o peregrino?

Confesso que eu mesma não sabia exatamente. Tinha visto fotos da imponente Basílica, com um gigante botafumeiro, construída no ano 814 para guardar a tumba de São Tiago, apóstolo de Jesus Cristo. Havia lido alguns livros sobre a mística do Caminho, desde os Templários e ouvira falar da sua beleza. Mas, talvez por pura inspiração, numa manhã de julho do fatídico ano 2020, acordei sobressaltada: estava decidida: faria o Caminho francês, 800km até Santiago de Compostela, em plena pandemia do coronavírus.

Refúgio Orisson
Refúgio Orisson – Pirineus.

Não bastassem os desafios normais da longa caminhada, outros tantos seriam previsíveis exigindo cuidados extras, flexibilidade e resiliência. O Caminho exige preparação física e mental. Busquei o máximo de informação possível nos blogs especializados, todos fundamentais para a empreitada. Logo percebi uma das maiores belezas do Caminho: a liberdade. Cada um escolhe seu percurso, seu itinerário e as distâncias a percorrer.  São múltiplos e infinitos os Caminhos, como as ranhuras da concha símbolo do peregrino. Cada um é livre para descobrir o seu próprio Caminho. Até desistir é uma opção.

Com a pandemia, tudo era diferente, uma sensação de suspeição pairava no ar. As lojinhas de souvenir fechadas, número reduzido de peregrinos, éramos apenas oito na Oficina de Peregrinos, em Saint Jean Pied de Port. O anúncio de tempestade ameaçava o fechamento da Rota de Napoleão. Sem a menor ideia do que viria na manhã seguinte, carimbei minha credencial e adormeci.

Cedo partimos, rotina de peregrino. Com o céu escuro, me atirei num absoluto desconhecido. A cada passo, a mesma pergunta… por que estou aqui? E como se vida coubesse no Caminho, os dias foram se sucedendo, sol, chuva, frio, calor, cansaço, noite, estrelas e novamente, o sol…. Andávamos sobre pedras, atravessando rios, subindo montanhas, cruzando pontes entre povoados, capelas e catedrais. O Caminho seria longo, o tempo necessário para expurgar as culpas, remexer o passado até encontrar perdão.

Início do Caminho de Santiago

A segunda onda da pandemia já se anunciava. As notícias não eram boas, Leon fechada, desviei de trem até Astorga. Amedrontada e sozinha repetia “Não tenha medo, basta seguir a seta amarela”. Há que ter coragem para fazer o Caminho! Dizem que o Caminho não dá ao peregrino o que ele quer, mas o que precisa encontrar.

Os dias foram ficando ensolarados, céu azul. O corpo foi se acostumando a um ritmo próprio, o ar puro trazendo leveza e ampliando a consciência, levando a outros espaços de pensamento. Na imensidão dos vales, ouvia os pássaros, e acompanhada de borboletas, pouco a pouco adentrando num mundo sutil, o Caminho foi se tornando mágico. Novos peregrinos surgiram, boas pessoas se aproximavam. Um lugar onde ninguém é desimportante, ninguém passa desapercebido.

3 momentos no Caminho

O último desafio, o Cebreiro, uma subida que parecia não ter fim. Chegamos na Igreja do Santo Milagre, de Santa Maria a Real, no dia de Nossa Senhora do Pilar – 12 de outubro. No altar, li em voz alta a oração do Amor, e percebi que o Caminho é um encontro amoroso com sua alma. Tive a certeza que chegaria tranquila ao meu destino.

Entramos em Santiago, ao som da gaita celta. De olhos fechados, fui levada até a frente da Catedral de Santiago. Entre sorrisos e choros nos abraçávamos, tirávamos fotos, correndo para receber a Compostela. Nos despedimos jurando um dia nos reencontrar. Fiquei na praça vazia, sozinha, diante da imensa Basílica. Teria, então, o tempo que precisava para conversar com São Tiago. Eu e Deus.

Catedral de Santiago de Compostela

Meu Caminho se tornara claro: descobri a força que me move, que me faz seguir em frente, enfrentando abismos e montanhas. Compreendi que meu Caminho é seguro, nunca me faltaria abrigo, nem pão ou vinho, e que jamais caminharia sozinha. Me tornara pura energia em movimento, sem ansiedade, angústia ou frustração. Só reverberando alegria e paz.

Fazer o Caminho significa embarcar numa viagem profunda para dentro de si, seguindo um Caminho de Luz, com um raio tão intenso que cega o olhar prepotente, subjuga o orgulho, impondo a humildade necessária para enxergar os próprios erros e se perdoar para então prosseguir leve, confiante nos propósitos mais íntimos da sua condição humana.

O Caminho na pandemia foi muito mais que um desafio, ou uma aventura. Foi um privilégio único. Tantas lições, aprendizados, e uma leitura obrigatória: a Carta de Santiago, uma síntese do espirito do Caminho, que o mantém vivo, intenso, quiçá até mais vibrante. A pandemia vai passar e o milenar Caminho continuará sendo um lugar de libertação para aqueles que buscam o início de uma vida iluminada.

Texto de Carmem Silvia de Arruda

Esse texto foi uma contribuição muito carinhosa da peregrina Silvia, que fez o Caminho em outubro de 2020, durante a pandemia, e gentilmente compartilhou a sua experiência conosco.

Se você gostou desse blog, indique para os amigos, se não gostou, deixe suas sugestões lá no Fale Conosco, assim a gente tenta melhorar. Agora se você é fã, poderá nos ajudar optando pelos parceiros que anunciam aqui no site, basta clicar nas propagandas e links, que você será direcionado para o site deles, assim o Santiago de Compostela Info ganhará uma pequena comissão. Ah! Os preços são os mesmos que você pagaria se comprasse direto no site deles.

 

Deixe um comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.